domingo, 6 de março de 2011

COMO ERA MESMO?

Houve um amor
Que assim o soube
Como se sabe a sede, a fome,
O frio, a dor

Mas, como tudo o que se sabe
E não se renova,
Tornou-se ele um costume quase automático,
Um ato reflexo,
Como quando se mata a fome, a sede,
Aniquila-se o frio e
A dor

Pelo desuso
Passou a ser como a palavra
Que se escondeu na memória
Mas está na ponta da língua o tempo todo

E assim, adormecida apenas,
Espera-se que possa
A um qualquer despertar
Ser ouvida de novo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

INSTEAD OF

Arrego.

Não a respiração arfante
debaixo de um peso de elefante,
brincar com a certeza de que o ar vai entrar
de novo.

Não
o tempo que se consegue ficar sem piscar
olhando fixo dentro do ferrolho
que vai abrir retaguarda somente
para a ronda de rotina.

Não, não –

a venda colada na árvore
e a desistência só para não levar o susto
a escolha de ser o covarde
morto.

O lenço encharcado substitui a bandeira
o grito escorre pra dentro
a assinatura espontânea da sentença
auto-imputada;

a mobilidade de um saco de batatas
em atropelo a si mesmo, levando tiros cegos em um porta-malas de
carro

uma puta de estrada a
pedir carona para as almas bandidas
marca a passagem do tempo com pregos enterrados debaixo
das unhas
na carroceria de refugiados

acende um cigarro na câmara de gás

como se um cadáver pudesse enfim se arrepender
e fazer de seu enterro um pedido
de desculpas.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Wall of sound

Eu dizia "eu te amo" para ouvir o eco.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sociedade de resultado

Minha primeira Copa do Mundo foi a de 1982.
Até então eu nunca havia me interessado por futebol, sempre fugindo da bola nas aulas de educação física do colégio.
Não sei se foi exatamente o esporte que me cativou naqueles dias de euforia. Lembro-me de meu pai trazendo fogos de artifício para casa, um ímpeto de celebração que era novidade para mim. Descobri que havia figurinhas dos jogadores embalando os chicletes de bola e quadradinhos em branco a serem preenchidos em uma comerciária variedade de tabelinhas confeccionadas por fabricantes de amortecedores, redes de armarinhos, achocolatados vitaminados e por aí afora.
E interessei-me pelo mundo, mais que em qualquer aula de geografia. Argélia, Kwait, El Salvador, Honduras, Nova Zelândia, Camarões e o exotismo de tantas cores, camisas, semblantes, nomes impronunciáveis para a minha rasa tarimba. Logo simpatizei com as chamadas zebras, os mais fracos, por representarem o improvável, o quase impossível. Os indies do futebol.
Também encantei-me com o Brasil. À medida que as vitórias da seleção brasileira se acumulavam, tive como certa a sua consagração. Na partida de Sarriá, a cada vez que a Itália marcava um gol no gramado inconstante da Sanyo 20 polegadas da sala, eu corria para o quarto para, chorando, implorar ao meu santinho de estimação, um menininho Jesus de Praga nomeado por minha mãe como protetor de meu nascimento e que ficava em um altarzinho de madeira, uma sorte melhor para o aclamado escrete canarinho.
Depois do jogo, meu pai saiu para buscar pão, como costumava fazer nos finais de tarde de fins de semana e feriados. Minha mãe sentou-se à mesa de jantar para esperá-lo. Aqueles comportamentos rotineiros, porém, pareciam-me despropositados. Eu não me conformava que teria de esperar quatro anos, quatro longos anos – mais de um terço do que havia vivido – por uma nova chance.
Eu não sabia disso naquele momento, mas Paolo Rossi acabava de me ensinar uma lição fundamental: a da frustração. Mais tarde aprendi, com outros Rossis, que as derrotas de todo dia dificilmente incluem uma possibilidade de redenção com data marcada; a espera, no caso, pode ser para sempre.
Analisando friamente, aquela foi não só a primeira mas também a minha última Copa. Em suma, perdi a fé, que me perdoe o meu santinho padroeiro. As coisas da vida, em geral, se revelam muito mais parecidas com a seleção do Dunga que com a do Telê. O primeiro, a estirpe do vencedor, defensor de um calculista futebol de resultados, predomina cada vez mais em relação ao estetismo do segundo. O calcanhar de Sócrates passou a ser visto como um calcanhar de Aquiles social, uma vez que os meios, ainda que providos de genialidade, perderam o valor se não levam a um fim pragmático.

sábado, 27 de março de 2010

It´s a Wonderful life

Uma das primeiras teorizações sobre suicídio de que tive notícia está em um verso de Bono Vox numa das faixas de “The Joshua Tree”, de 1987. Eu tinha 16 anos e até hoje não cheguei à conclusão se a frase é de uma poética pueril ou simplesmente pobre: “Every day the dreamers die/ to see what´s on the other side” (“Todo dia os sonhadores morrem/ para ver o que há do outro lado”).
Bonito, até. Como a cena em que o protagonista de “The Million Dollar Hotel”, de Wim Wenders, se enche de lirismo – uma corridinha em lento travelling ao som de adivinhem que banda? - para pular de um prédio.
Muitos Drakes, Plaths, Cristinas Césares e Cobains depois, sem contar meus suicidas interiores, posso dizer que a decisão de pôr fim à própria vida exerce em mim um certo fascínio. Tudo bem que nem só artistas geniais se matam. Certamente os anônimos que perturbam condutores e passageiros da companhia de trens metropolitanos e os nada glamorosos perdidos de amor que fazem aumentar o consumo de veneno de rato nas periferias contam muito mais para as estatísticas que músicos, escritores e criativos em geral.
Fico imaginando o ponto de inflexão em que o compasso de espera –por qualquer coisa que seja- se torna insuportável. E aí, então, como é tomada a decisão? Friamente? Por impulso? Conscientemente? Escolhe-se a roupa de baixo? A última refeição? Escovam-se os dentes? Ou nada disso importa mais, exterminadas, antes da aniquilação do corpo, a vaidade, a vontade e a pulsão que humanizam a existência e a ela conferem algum sentido?
Qualquer coisa de fascinante, mesmo, só se for do lado de cá, do observador. Do lado de lá, de dentro do observado, à medida que cresce o terror, é exatamente o fascínio que se ausenta. Desloca-se, no caso dos criadores, para a sua obra. Como aconteceu com os músicos Mark Linkous e Vic Chesnutt, que transformaram a dor em poesia –uma conferindo autenticidade à outra- até onde foi possível. Suas canções, que me levaram a escrever este texto, encantam e continuarão encantando muita gente por um bom tempo.
Esse é o único alento ao desespero de imaginar que, ao contrário do que prega a filosofia de arena do Bono, no fim esses caras simplesmente fecharam os olhos para qualquer tipo de sonho.